A posição do Espiritismo no quadro geral do Conhecimennto parece contraditória para muitas pessoas habituadas a sistemática cultural do nosso tempo. Algumas consideram utópica ou absurda as ligações das áreas clássicas da Ciência, da Filosofia e da Religião no sistema doutrinário geral. Mas a Teoria do Conhecimento (Gnoseologia ou Epistemologia) têm como objeto precisamente essa ligação, necessária à elaboração de um sistema geral do saber. O próprio aparecimento da Filosofia das Ciências e da Psicologia da Religião evidenciam essa exigência da evolução cultural.
E há exemplos históricos recentes que não podem ser negligenciados pelos estudioosos. O Positivismo de Augusto Comte, fundado nos dados da Ciência, pretendia arquivar a Metafísica e toda a religiosidade, mas, acabou levado pelas exigências sociais (a necessidade de manter uma ordem social de fundamentos morais) ao desenvolvimento de uma Religião da Humanidade, em que o anseio do positivo-concreto se pulverizou na concepção abstrata e metafísica da Deusa Humanidade. O culto positivista revestiu-se de todos os aspectos das chamadas religiões positivas, com templos e rituais, inclusive a celebração da missa positivista.
O Marxismo, na mesma linha do exclusivismo científico, fundado numa análise exaustiva da estrutura capitalista, apoiou-se no Materialismo Dialético, pretendendo extirpar do mundo as concepções metafísicas e religiosas, mas viu-se obrigado a criar a mística do proletariado e a converter-se numa religião social em que o Homem se colocou no lugar de Deus e o Estado se transformou numa igreja universal estruturada num sistema de um clero leigo, tendo como substância vital a fé terrena nos poderes humanos, desenvolvendo o culto do trabalho numa sistemática ideológica em que não faltam as bênçãos e maldições.
No Sartrismo (um Existencialismo à moda de Sartre), o horror a metafísica e a religiosidade não impediu o recurso metafísico da dialética hegeliana para explicar a projeção do ser na existência, com o reconhecimento inevitável da finalidade transcendente do ser. Para escapar às exigências lógicas dessa capitulação fllosóflca, Sartre capitulou de novo ante a abstração total do nada. Se a morte é a nadificação do ser, como ele propõe, é claro que na morte o homem atinge o extremo de toda concepção metafísica. O nada, como vazio absoluto e por isso mesmo inconcebível, seria a felicidade suprema, segundo Sócrates, com a volta do ser à paz sem limites. Segundo Kant, que colocou a Metafísica além de toda possibilidade humana, sem negá-la, o nada só existiria no seu próprio conceito, uma idéia vazia. Pois, dessa abstração total Sartre fez a sua religião do absurdo, em oposição ao absurdo das religiões. Entretanto a fé de Sartre no seu ídolo vazio assemelha-se a fé dos gregos em seus deuses imaginários.
Por falar em fé, cabe lembrar que as investigações de fllósofos atuais, como Witehead, Cassirer e Heidegger revelaram o fundamento fideísta de toda investigação científica. Partindo das pesquisas fenomênicas, em áreas típicas da Natureza, os cientistas usam o método indutivo para chegar as conclusões unitárias e positivas. Mas a impossibilidade material de submeter todo o Universo a esse processo leva à dedução racional da existência, de uma ordem universal, sem a qual a verdade científica ficaria limitada ao alcance da investigação possível. Assim, para poder conceber uma imagem do Universo, os cientistas têm de apoiar-se na fé da ordem universal. Esta é apenas um pressuposto científico, mas erigise em princípio de fé, nas contingências e condições exatas em que os religiosos são obrigados a fundar a fé em Deus.
Kardec lembra a existência da fé humana, a fé do homem em si mesmo, na sua capacidade para conhecer e dominar a Natureza. A base real de todo o conhecimento, desde o pressuposto da magia primitiva nas selvas, até os pressupostos científicos e religiosos da atualidade, é uma só, o princípio metafísico da fé.
Parece claro e inegável que a Doutrina Espírita não apresenta nenhuma condição lógica ou epistemológica nesse sentido, mostrando-se plenamente integrada nas exigências e nas leis da Teoria do Conhecimento. As diversas áreas do saber não se contradizem, apenas se complementam. E a Ciência Espírita, como todas as demais, iniciou-se com as pesquisas fenomênicas. Não partiu das deduções de princípios abstratos, de nenhuma metafísica suspeita, mas da rigorosa pesquisa de fenômenos, dos quais, através do método indutivo, elevou-se ao plano da teoria, formulação de um sistema do mundo que abrangia nada menos do que toda face oculta da própria realidade terrena.
As hipóteses iniciais de Kardec não eram espíritas, eram materialistas. Mas a pesquisa derrubou essas hipóteses, deslocando o pesquisador do campo científico dominante no seu tempo para um novo campo, hoje confirmado pelas Ciências em quase todos os seus ramos. A Física, que se tornara ditadora das Ciências, como observa Rhine, teve de abdicar de seu absolutismo materialista para reconhecer e confirmar - sem o querer e sem o saber - as conquistas espíritas de há mais de um século. Não se conhece, na História das Ciências, nenhuma vitória tão completa e esmagadora como essa.
Mas há criaturas que apontam no Espiritismo a contradição entre a doutrina e a prática. Estranham que numa instituição espírita em que se fala de Ciência se entreguem a orações, a evocações dos poderes espirituais. Mais estranho do que isso foi a leitura da Bíblia pelos astronautas norte-americanos em suas viagens siderais. Mas quando se sabe que a religião, no Espiritismo, não é o produto de uma revelação divina ou de uma proclamação profética, compreende-se que não há contradição na mistura de Ciência e Religião nos Centros Espíritas. Sem nenhum compromisso com o Pragmatismo de William James, os espíritas fazem prece e evocam o auxílio dos espíritos superiores, não por motivos utilitários ou por simples crença ou crendice, mas porque sabem positivamente que os espíritos nada mais são do que seres humanos desencarnados que podem ajudá-los.
Os críticos dessa atitude racional dos espíritas fazem como os médicos e os saberetas enfatuados do século passado, que riam da vacina de Pasteur, certos de que ele recorria a seres inexistentes e inventados pela sua imaginação. A comparação é tanto mais certa quando Pasteur e Kardec descobriram mundos invisíveis que nos cercam e podem agir sobre nós, causando-nos doenças ou restabelecendo-nos a saúde. Os espíritas não dispõem de microscópios para provar a existência e a ação dos espíritos, mas estes se incumbem de revelar-se a crédulos e incrédulos através de fenômenos que foram investigados pelos maiores cientistas do século passado e do nosso, que, como Crookes e Richet no passado, Rhine, Soal, Price e tantos outros, no presente, impuseram à Ciência a verdade espírita.
As sessões espíritas diferenciam-se das cerimonias religiosas das igrejas, em primeiro lugar, por se basearem na fé racional; em segundo, por se utilizarem de leis naturais e não de fórmulas sacramentais; em terceiro, por se apoiarem numa Ciência hoje confirmada pelas investigações científicas nos maiores centros universitários do mundo. As aparências iludem, mas os homens de cultura cientítlca não costumam ficar nas aparências. A prece espírita não se funda na suposição de sua eficácia milagrosa (o que vale dizer mágica) ou psicológica, sugestiva, mas na certeza da ação conhecida nas leis naturais que estruturam a realidade visível e invisível em que vivemos. O físico e o químico não usam rituais para obterem os fenômenos que desejam. Usam os instrumentos e os ingredientes necessários. Os espíritas também não possuem rituais, não crêem num suposto poder das fórmulas mágicas, mas usam os Instrumentos e as energias necessárias à produção dos resultados que buscam.
Numa sessão espírita os instrumentos são os médiuns (aparelhos sensibilíssimos da supertecnologia da Natureza) e os ingredientes são as vibrações mentais e emocionais dos médiuns e dos participantes da reunião. E assim como o físico e o químico obtêm os resultados desejados, desde que as condições exigidas tenham sido cumpridas, assim também os espíritas, dentro das condições necessárias, obtêm os efeitos e os fenômenos que desejam. A Física revelou a existência e o poder dos campos de força, dos fluxos de energia, das correntes elétricas e magnéticas e mostrou como podemos produzi-los, controlá-los e aplicá-los.
A Ciência Espírita fez o mesmo com as energias mentais, afetivas, volitivas da mente e de todo psiquismo humano. Um espírita estudioso, conhecedor de sua doutrina e experiente nas práticas mediúnicas, sabe lidar com essas forças e como utilizá-las. A fé que o anima não é cega e formal, dogmática e emocional. É a fé do cientista em sua ciência: racional, experimental, comprovada em milhões de aplicações eficazes em todo o mundo. Mesmo as criaturas incultas e inscientes, mas experientes, guiadas pelo bom-senso, agem com o devido critério e obtêm resultados muitas vezes assombrosos. Os benefícios da Ciência, uma vez divulgados os meios de obtê-las, são acessíveis a todos.
Havendo seriedade e desejo real de servir, consciência de suas limitações (o que vale dizer humildade), qualquer pessoa inteligente e honesta pode utilizar-se dos recursos científicos mais conhecidos (excluídos os casos de especialidades superiores) obtendo resultados satisfatórios. A ligação da Ciência com a Religião permite essa franquia maior a todas as criaturas de boa-vontade, que só querem servir e não explorar ao próximo. Porque a fé científica reflete-se na fé religiosa, mais acessível à maioria, suprindo a falta de conhecimentos específicos com o auxílio de práticas tradicionais do campo religioso.
Uma sessão espírita começa geralmente pela prece do Pai Nosso, dita por uma pessoa, com acompanhamento apenas mental da assistência. Onde se usa o acompanhamento oral, em tom de ladainha, está evidente a influência de religiões de origem do dirigente, ou dirigentes. Um observador estranho, que assiste pela primeira vez, acha que o Espiritismo não passa de uma seita cristã e ingênua. Mas um espírita conhecedor da doutrina poderá explicar-lhe a razão do fato. A prece do Pai Nosso não tem nenhuma influência mágica especial. Tem apenas, a seu favor, o fato de figurar nos Evangelhos como prece ensinada pelo Cristo, o que a transformou numa prece tradicional e obrigatória em todo o Cristianismo. Ela não é imantada por nenhum poder misterioso, mas tem a carga emotiva de uma tradição de dois mil anos.
À semelhança do soneto, que na poesia resiste a todas as inovações, o Pai Nosso tornou-se uma forma psico-emotiva, uma estrutura oral introjetada no inconsciente cristão coletivo. A introjeção técnica da Psicanálise, corresponde a uma absorção emotiva realizada pelo inconsciente. A forma ou emoção assim absorvida permanece no inconsciente como uma espécie de arquétipo correspondente as exigências psicológicas ou espirituais da espécie humana. Nas sessões espíritas há duas realidades que devem ser levadas em conta: a presença humana material e a presença humana espiritual. Espíritos encarnados e desencarnados mostram-se sensíveis à prece do Pai Nosso, que lhes dá maior confiança e segurança no decorrer dos trabalhos mediúnicos. A prece não é dita apenas por formalismo ou superstição. Há um motivo psicológico e espiritual para essa prática marcar o fim das sessões. Muitas entidades espirituais perturbadas se acalmam ao ouvi-la e o clima da sessão se torna mais favorável aos resultados esperados.
O dirigente, declarando iniciados os trabalhos mediúnicos, pede a todos os presentes que elevem o seu pensamento a Jesus. Outro motivo de escândalo para o observador leigo. Mas a figura de Jesus é também um arquétipo, uma forma introjetada. A concentração mental que favorece o clima de recolhimento (um dos ingredientes da sessão) exige que todos dirijam o seu pensamento para um alvo superior. Pensar em Deus é mais dificil, pois a maioria pensaria apenas numa palavra. A concentração não é individuual, mas coletiva. Todos os presentes pensando em Jesus, o pensamento de todos se concentra numa idéia definida e respeitada por todos. Não se trata também de uma fixação mental da figura de Jesus. Os dirigentes avisados explicam que ninguém deve fixar uma imagem, pois isso exigiria esforço mental cansativo, tensão mental contrária ao fim desejado, que é a criação e a manutenção de um ambiente fluídico, ou seja, de vibrações serenas e estimuladoras. Trata-se de uma técnica psicológica de resultados espirituais.
Na doutrinação (esclarecimento dos espíritos perturbados, que perturbam pessoas presentes ou ausentes) o nome de Jesus e os seus ensinos serão constantemente lembrados, não por formalismo, mas porque essas lembranças tocam a sensibilidade dos espíritos. A doutrinação não é uma imposição, não tem a violência das práticas assustadoras do exorcismo. Trata-se de uma técnica persuasiva, tipicamente psicológica, visando desviar a mente dos espíritos doutrinados das idéias fixas a que se apegam obstinadamente. Desviada a orientação mental das imantações ao ódio, à vingança, à perversidade, ou mesmo às intenções sectárias e fanáticas, ou ainda as lembranças da vida que se findou, à lembrança do corpo já transformado em cadáver, a mente do espírito se torna acessível às renovações necessárias que o levarão à normalidade.
Esses problemas não são compreendidos até mesmo, às vezes, por antigos adeptos e praticantes da doutrina. Kardec os explicou reiteradamente, mas muitos espíritas preferem a leitura de livros fantasiosos aos da doutrina e particularmente ao O Livro dos Médiuns, indispensável a todos os que exercem funções doutrinárias ou mediúnicas. Além disso, o estudo doutrinário exige ponderação, reflexão, desejo verdadeiro de penetrar na problemática espírita para compreender, não apenas este ou aquele ponto, mas a profundidade da doutrina, suas implicações com a cultura do nosso tempo e as perspectivas imensas que abre para o futuro humano. Sem esse interesse encarado com dedicação e humildade, os estudantes passam pela doutrina como gatos sobre brasas, saindo apenas chamuscados e, o que é pior, convencidos de que dominaram o assunto.
Num estudo sobre religiões mediúnicas no Brasil, baseado em pesquisas, o Prof. Cândido Procópio de Camargo atrelou as formas do Sincretismo Religioso Afro- Brasileiro ao Espiritismo, propondo a teoria do continuum mediúnico. Esse continuum realmente existe, mas não caracteriza apenas as áreas indicadas. As manifestações mediúnicas são universais e de todos os tempos. Sendo a mediunidade uma faculdade humana decorrente da constituição do homem como espírito e corpo, deu origem as religiões naturais ou primitivas em toda a Terra. Kardec assinala esse fato em suas obras, dando-lhe mas ênfase no O Livro dos Médiuns. As pesquisas de antropólogos ingleses na Austrália e de franceses na África, seguidas dos magistrais estudos de Ernesto Bozzano na Itália provaram a origem única de todas as religiões.
Todas elas nascem e se alimentam dos fatos mediúnicos. Mesmo depois de superadas, pela civilização as fases primitivas, as religiões continuam ligadas às suas raízes mediúnicas e continuam a se alimentar de ocorrências mediúnicas. Nem podia ser de outro modo, pois só na mediunidade, elas encontraram a possibilidade de sustentarem objetivamente os seus princípios. A igreja Católica suspendeu o culto pneumático das igrejas apostólicas, que consistiam nas manifestações dos espíritos (do grego: pneuma) e eliminou o dogma da reencarnação. Mas não conseguiu retirar dos textos sagrados do Judaísmo e dos Evangelhos esse princípio. Interpretações teológicas fizeram o mesmo nas Igrejas da Reforma.
Não obstante, a própria eleição dos Papas Católicos guarda ainda hoje sua ligação com a mediunidade. Formalmente a escolha do novo Papa depende de inspiração do Espírito Santo. Nas Igrejas protestantes e nas seitas do tempo apostólico ainda sobreviventes, a manifestação do espírito faz parte integrante e essencial do culto. As aparições de santos e anjos são consideradas como válidas em todo o mundo cristão, judeu e islâmico. O Corão é um livro psicografado. O exorcismo judeu é feito para afastar o dibuki, alma penada que perturba as criaturas humanas. Todas as religiões antigas, como assinala Kardec, inclusive as mitológicas, com seus oráculos e pitonisas, eram mediúnicas. As seitas japonesas infiltradas no Brasil são tipicamenre mediúnicas ... As práticas indianas da Ioga entremeiam-se de surpreendentes manifestações de espíritos. Os sacramentos das religiões mais refinadas estão carregadas de magia, de heranças mágicas do mediunismo primitivo.
Não se pode fazer uma discriminação de religiões mediúnicas típicas, que não encontre apoio na realidade histórica e antropológica. Proposições discriminatórias só servem para confundir o problema, em que pesem as boas intenções do autor ou autores. Os fenômenos mediúnicos estão por toda parte, embora a mediunidade só tenha alcançado cidadania no mundo civilizado através do Espiritismo e das Ciências Psíquicas por ele provocadas. A psicografla espírita, muito divulgada em todo o mundo, opõe-se a psicografia católica, com alguns volumes já traduzidos entre nós. E, como disse Chico Xavier num programa de televisão de grande audiência, o próprio Moisés psicografou no Sinai as Tábuas da Lei.
J. Herculano Pires