Falar sobre a origem dos espíritos é algo muito além da nossa capacidade. Na verdade,
o que a maioria absoluta de nós podemos fazer é especular, raciocinar e intuir algo a
respeito da nossa origem e de Deus. Acredito que somente alguns seres que encarnaram
na Terra tiveram um alto nível de consciência espiritual para entender com mais clareza
a respeito de Deus e da origem dos espíritos. Uns ficaram no anonimato; outros tornaram-s
e ícones para a humanidade. Mas, o certo é que esta questão, assim como outras, deve ficar
em aberto.
Kardec abordou este tema em O Livro dos Espíritos, no primeiro capítulo do livro segundo e,
como ele sempre deixou claro, temos que usar nossa fé raciocinada. Na verdade, existem
questões que precisam mais do que raciocínio. Precisam ser intuídas, sentidas, vivenciadas...
Quando estudamos uma obra, temos que ser, acima de tudo, céticos, "olharmos à distância",
examinarmos antes de aceitar ou negar algo. E mesmo ao negar ou aceitar, mantermos a mente
aberta, deixando espaço para as dúvidas ou outras respostas possíveis. Na verdade, acho que
é muito difícil termos certeza absoluta de algo...
Além desta postura, ao estudarmos uma obra, também devemos seguir um método básico, sem
o qual o nosso entendimento será prejudicado. Resumo este método básico em:
1 – Analisar e levar em conta o contexto cultural da época em que a obra foi escrita;
2 – Buscar entender as influências culturais que o autor sofreu;
3 – A quem (público alvo) o autor escreve;
4 – A visão/entendimento do autor do assunto tratado;
5 – Somente depois colocar nossa opinião a respeito.
Além disso tudo, levarmos em conta os possíveis erros de tradução, muito comuns até mesmo
nas obras da codificação.
A influência cristã
Allan Kardec recomenda, em seu Catálogo Racional para se montar uma biblioteca espírita
, o Baghavad Gita, um dos clássicos do hinduísmo. Inclusive, os espíritos orientam o codificador,
na questão 628, a não negligenciar nenhum sistema filosófico antigo, nenhuma religião, pois
todos possuem germes de grandes verdades, ainda que pareçam contraditórios e estejam esparsos.
Ou seja: nada de preconceito. Então, por que o foco esteve no Cristianismo? Arrisco duas
explicações: Primeiro porque os próprios espíritos que se manifestaram e coordenaram o trabalho
de Kardec possuíam laços estreitos com o Cristianismo, em sua vertente católica. Quando se
propõe que o Espiritismo seja a “Terceira Revelação”, demarca-se um processo histórico que
começou no judaísmo, com Moisés, passou por Jesus e teria na codificação espírita seu terceiro
momento. Essa linhagem espiritual ainda continua nos dias de hoje. Muitos espíritos e médiuns
espíritas, que realizaram e ainda realizam um trabalho inestimável para a doutrina, ainda
apresentam resquícios da mentalidade católica. Portanto, é preciso, ao se estudar uma obra,
saber identificar esses traços culturais.
Em segundo lugar, devemos lembrar que na Europa do século XIX quase nada se sabia sobre
budismo, hinduísmo, taoísmo, etc. Então, era natural que Kardec se apoiasse no evangelho de
Jesus e não no Baghavad Gita para estruturar a base moral da doutrina, que no Brasil foi
transformada em religião.
Deus e os espíritos
Os espíritos da codificação afirmam existir dois elementos constitutivos do universo: espírito
e matéria. Neste caso, Kardec usa o termo “espírito” como sinônimo de um elemento inteligente
universal, o princípio inteligente. Já a matéria, com suas diferentes combinações químicas,
até mesmo o princípio vital, que dá vida a todos os seres que o absorvem e assimilam, teria
sua fonte na matéria universal modificada, no fluido universal.
Na questão 27 de O Livro dos Espíritos, Kardec pergunta se haveria, assim, dois elementos
gerais do universo: a matéria e o espírito. Os espíritos responderam: “Sim, e acima de tudo
Deus, o criador, o pai de todas as coisas; essas três coisas são o princípio de tudo o que existe,
a trindade universal. Mas, ao elemento material é preciso juntar o fluido universal, que
desempenha papel intermediário entre espírito e a matéria propriamente dita, muito grosseira
para que o espírito possa ter uma ação sobre ela. (...)”. A ideia de uma trindade universal
também está presente nas doutrina católica, protestante, hindu, entre outras.
A questão 77 afirma que os espíritos são obra de Deus, como uma máquina é obra do homem
e não ele mesmo. Mas – pergunto eu – se Deus está acima de tudo, se é Infinito, Todo-poderoso...
como pode existir algo que não seja Ele? Sim, porque se a máquina não é o homem, de acordo
com a comparação feita, nós não somos Deus... É possível algo não ser Deus? Se isso for possível,
Deus passa a ter limites, deixa de ser ilimitado e perde um de seus atributos.
Quando Kardec pergunta se os espíritos tiveram princípio ou existem, como Deus, de toda
a eternidade, os espíritos respondem: “Se os espíritos não tivessem tido princípio, seriam iguais
a Deus, ao passo que eles são sua criação e submetidos à sua vontade. Deus existe de toda a
eternidade e isto é incontestável; mas saber quando e como nos criou, não o sabemos.” Novamente
é reforçada a ideia de que somos criação de Deus, mas não somos Deus. Inclusive, o conceito é um
tanto antropomórfico, apresentando um Deus “que cria e submete os seres à sua vontade”.
Resquício cultural? Enfim... antes, na questão 21, os espíritos da codificação reconhecem que
não sabem se a matéria existe desde o princípio, como Deus, ou foi criada por ele em determinado
momento.
Depois, a questão 79 diz que os espíritos são individualizações do princípio inteligente, como
os corpos são individualizações do princípio material, mas como ocorreu este processo de
individualização é desconhecido. Atenção: a ideia de princípio, aqui, é de origem, matriz,
base ou substrato para a existência. O que é estranho, nisso tudo, é que os espíritos que orientaram
Kardec não sabem se a matéria existe desde toda a eternidade, não conhecem nossa origem,
não sabem como ocorreu o processo de individualização dos espíritos em relação ao princípio
inteligente, mas, afirmam com toda a certeza que os espíritos foram criados por Deus, mas
não são ele, apesar de serem imortais.
Criados, mas imortais?
Kardec também achou estranho que algo que teve começo (o espírito) possa não ter fim
(questão 83). Pra mim, a solução temporária para este enigma está na própria pergunta de
Kardec, que é mais importante que a resposta obtida. Vejamos a questão 83 na íntegra:
“Os Espíritos têm fim? Compreende-se que o princípio de onde eles emanam seja eterno,
mas, o que pergunto é se sua individualidade tem um termo e se, num tempo dado, mais
ou menos longo, o elemento de que são formados não se dissemina e não retorna à massa
donde saiu, como ocorre com os corpos materiais. É difícil de se conceber-se que uma coisa
que teve começo possa não ter fim”. Pelo exposto, somos emanações de um princípio espiritual
eterno – incriado e infinito –, portanto, nossa essência espiritual nunca foi criada, nem teve
começo. Existe de todo o sempre. Conforme o conceito espírita, Deus e o princípio espiritual
existem de toda a eternidade, ou seja, até mesmo antes do Big Bang; a matéria é que eles não
souberam definir se existe desde toda a eternidade. Pela Ciência atual, sabemos que não
(a codificação é anterior à Einsten e à teoria do Big Bang).
Portanto, o que teve princípio não é nossa essência espiritual, mas, nosso processo de
individualização, que deve ter ocorrido, pela lógica, depois do Big Bang. Então, existe algo
em nós que não tem fim, é imortal, e que também não teve começo, nunca foi criado:
é o princípio inteligente. O espírito, que é uma individualização dele, sim, teve início, ou
melhor dizendo, iniciou um processo de individualização. E se o princípio inteligente está
em Deus, nós também estamos – e por que não – somos Deus!